segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Recordar José Medeiros Ferreira por Eduardo Paz Ferreira





Estamos a chegar ao fim de dois dias memoráveis em que muitos dos que admiram e adoram Medeiros Ferreira partilharam nesta sala emoções, recordações, reflexões e fizeram-no, como notou o Presidente Jorge Sampaio, num ambiente de alegria, a que apesar de tudo não escaparam algumas lágrimas furtivas, como sucedeu com o próprio  Jorge Sampaio e comigo, o que não surpreenderá quem me conhece e sabe que tenho a lágrima fácil.

 Una lacrima sul viso, como naquela velha cançoneta italiana, ao som da qual seguramente o José Medeiros Ferreira muito dançou nas alegres festas de verão açorianas que tanto prazer lhe davam.

 Lembrando-me do profundo amor de Medeiros Ferreira pelo cinema, recordei, de algum modo,  uma daquelas belas comédias do Dino Risi, Os Novos Monstros, com o extraordinário Alberto Sordi, no qual  um enterro de um cómico se transforma numa autêntica festa com todos os amigos a recordarem algumas das suas melhores piadas.

 Mas a cinefilia e o amor presente no livro e agora tão exuberantemente apresentado nesta sala, confirmou que um título que chegou a ser pensado – Deus sabe quanto o amámos –que glosava o título português, por uma vez feliz, de um belíssimo filme de Vincent Minnelli, Some Comme Running teria sido uma possibilidade.

 No árduo trabalho de encontrar um título, considerámos também As Sete Vidas de Medeiros Ferreira, título que evocaria simultaneamente as suas múltiplas áreas de interesse – seguramente até mais do que sete – e a sua capacidade de resistir às sucessivas armadilhas e ataques de  que foi alvo e que levaram tantas vezes a declará-lo morto política, civil e academicamente, como a Maria Emília recorda no seu belo texto.

 Evocando a veia operática de Medeiros Ferreira também foi alvitrado  a Força do Destino. Verdi, que Medeiros Ferreira tanto amava. O compositor da liberdade, do patriotismo, da glorificação da revolta seria sem dúvida uma excelente banda sonora. Ainda que tenda a pensar que Medeiros Ferreira é o exemplo de alguém que venceu a força do destino, como ficou aqui claro.

 Com toda a felicidade, António Sampaio da Nóvoa evocou, a propósito dessa capacidade de Medeiros Ferreira, um trecho de Almada  “nascer é o feito dos outros, o nosso é depois de nascer até chegarmos a ser aquele que o sonho nos faz” E esta foi a força de Medeiros Ferreira

 José Medeiros Ferreira: a liberdade inventiva é uma compilação de textos extraordinários, de sensibilidade, de memória, de emoção, de análise racional, de revelação de um homem bigger than life  ou de um homem capaz de dizer com o mesmo orgulho de  Orson Welles no Citizen Kane O meu nome é José Medeiros Ferreira. Ou de dizer a reitores e directores da PIDE: o José Medeiros Ferreira não se mata assim.

 O livro em si mesmo é uma bela peça, como é habitual na Tinta da China, e a fotografia de Walter Tapia, um açoriano, exposta permanentemente na Livraria SolMar, um farol de cultura e resistência à banalização dos livros – pelo grande mérito do José Carlos Frias e, inicialmente, do Albano Pimentel cuja memória evoco sentidamente, sempre foi e compreensivelmente uma das suas favoritas. Nela está presente tudo aquilo que adorávamos em Medeiros Ferreira.

 Creio que qualquer um de nós se sente orgulhoso por sermos de um país onde é possível fazer uma sessão comemorativa que junta um grupo com a qualidade humana, profissional, política e académica de quantos participaram nos painéis ou estiveram na plateia.

 Impressiona-me a coragem de quantos fizeram a resistência, daqueles que são reconhecidos e, sobretudo, daqueles que seguiram a sua vida anonimamente sem reivindicarem qualquer recompensa e qualquer reconhecimento. Limitaram-se a fazer aquilo que para eles foi um imperativo e, seguramente, alegram-se porque contribuíram para derrubar a ditadura e entristecem-se com o rumo que as coisas levam entre nós.

 Outra figura ímpar da política portuguesa, cujos caminhos se cruzaram tantas vezes com Medeiros Ferreira, Salgado Zenha falava de forma particularmente comovente num discurso proferido no jantar dos setenta anos promovido por um largo grupo de amigos: "Pela estrada já ficaram muitos dos meus amigos, que· morreram por vezes em circunstâncias difíceis, vítimas· do apego aos seus ideais e do seu altruísmo. E morreram muitas vezes amargurados e ignorados. O futuro" poderá esquecê-los, mas a verdade é que esses são o sal da terra. Sem eles a vida seria uma sucessão interminável de combates individuais, que tornaria a vida humana numa travessia sem beleza e sem dignidade. A sua me1hor mensagem foi a sua vida e é dessas vidas que não têm valor mediático que se forja no mais profundo do ser coletivo a sua consciência moral".

        Impressiona-me, também, pensar que muitos daqueles que aqui estiveram presentes foram ostracizados pelo poder político. Não puderam dar à pátria aquilo que sabiam e não duvido que ela estaria hoje bem melhor se a eles não se tivesse substituído uma classe política, na sua generalidade, cinzenta, carreirista e timorata.

 É uma circunstância que foi aqui assinalada a propósito de Medeiros Ferreira. O seu caso não é único mas é exemplar. O partido em que militou longamente desinteressou-se dele. Como Medeiros Ferreira comentava com a habitual ironia, António Guterres convidou-o para dois cargos distantes, no estrangeiro. Medeiros Ferreira aceitou os dois convites. O primeiro deixou de estar à disposição do governo português, à sua nomeação para o segundo opuseram-se pessoas de quem nunca se poderia esperar tal atitude. 

 Multiplicam-se, aliás, os episódios que permitiram a Medeiros Ferreira usar a sua ironia. Numas eleições ao Parlamento Europeu, Mário Soares encabeçava a lista, António José Seguro, então muito jovem, era segundo e Medeiros Ferreira o terceiro. Interrogado por um jornalista se não o incomodava o facto de vir atrás de António José Seguro, Medeiros Ferreira respondeu: se ele não se incomoda de ir à  minha frente eu também não me incomodo de ir atrás.

 Mas esses eram tempos em que ainda o convidavam para as listas porque, mais tarde, nem isso aconteceria no Largo do Rato e apenas o Partido Socialista Açoriano e o Presidente Carlos César compreenderam a enorme mais valia que seria e foi a sua presença na Assembleia.

 Mas a grande questão que há que colocar é porque foi este o destino de José Medeiros Ferreira e de quase todos estes homens e estas mulheres e a paradoxal resposta é que foi-o porque eram livres, independentes e corajosos.

 E a outra é porque estes homens e mulheres e o povo português no seu conjunto não são capazes de se juntarem e criarem uma frente de luta contra a prepotência, a injustiça social, o servilismo perante o estrangeiro.

 A resposta encontro-a num belo texto da escritora Hélia Correia ““A nitidez que existia nas velhas ditaduras, os claramente vistos Bem e Mal, a ausência de dúvida nas causas, os perigos a que o corpo se arriscava, alimentavam plenamente a alma. Não era porque o inimigo tinha um rosto que a resistência se tornava articulada com a própria vida, como uma moral. Não tinham rosto os espiões da PIDE. Havia nomes, sim. Mas também temos nomes agora. A diferença é que o novo poder não ameaça directamente com prisão e com tortura. Por um reflexo quase biológico, a violência, o assassinato, o corte da estrutura vital cria mais vida. Era esse o princípio que levava uma revolução a triunfar. O grande golpe é o que se dirige à alma. O meu sentido de “alma” é o que vem da anima latina, claro está, a instilação da vida que nos torna activos e pensantes. Qualquer torcionário aprende cedo que a alma não se tira com a faca mas com manobras de desorientação e de abatimento. O sopro anímico extingue-se depressa, bem mais depressa que o bater do coração, e sem sujar. “.

 Provavelmente Medeiros Ferreira faz-nos mais falta do que nunca, mas o seu legado cívico, político e moral está aí para nos inspirar.

 Senhor Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Caro Dr. Artur Santos Silva, não quereria terminar sem agradecer o entusiasmo com que recebeu esta iniciativa e a minha alegria por ela se desenrolar neste cenário de que Medeiros Ferreira tanto gostava e onde teve tantos momentos de prazer como, aliás, todos nós.

E o prazer, como nos demonstrou Medeiros Ferreira, o prazer é sempre possível, mesmo “na noite mais escura em tempos de servidão”. Ele tem que animar a nossa luta

 
E volto a recordar Salgado Zenha. Numa dramática ironia morreram com a mesma idade. Quando fizeram setenta anos estavam ambos doentes, amigos que, na generalidade, não sabiam o que se passava homenagearam-nos. No discurso já referido, Zenha afirmava “"Pela parte que me toca, sei que a vida foi boa para mim. Frequentemente a jovens que iniciam a vida, _ e a quem bem quero, desejo-lhes que sejam tão felizes como eu tenho sido. Sei que· a vida é uma longa aprendizagem e é uma aprendizagem que nunca termina.· Por vezes julgamos que a nossa visão do. acontecimentos está acabada. E de um dia para outro quer na vida da ·sociedade, nacional ou mundial,  quer  na  nossa  vida  pessoal,  surgem  acontecimentos que    nos obrigam a rever o que sentíamos ou pensávamos sobre os outros ou sobre o mundo. Poderei mesmo dizer que presenciámos a· maior mutação mundial desde que a guerra terminou em 1945. Tudo muda. Sabemos que tudo está a mudar. Mas dificilmente poderemos adivinhar qual o sentido ulterior de todas as mudanças. Alguns lamentam-se. Pela minha parte, aceito como normal e inerente à condição humana · o devir permanente do mundo· em que nos é dado viver. E como obrigação minha de todos nós, darmos a nossa contribuição ·para que os que se nos seguirem tenham consciência de que fizemos tudo o que· estava ao nosso alcance para lhes deixar um mundo melhor daquele em que vivemos ".

 Disse-o Salgado Zenha poderia tê-lo dito Medeiros Ferreira. Também por isso tanto os amámos.


Eduardo Paz Ferreira, Conferência de Homenagem a José Medeiros Ferreira, na Fundação Calouste Gulbenkian, 20 Fevereiro de 2015.
 

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