quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

"Uns Mais Outros Menos" por José Maria França Machado




UNS MAIS E OUTROS MENOS

 

Eu pretendia começar dizendo que o desenho é a fronteira entre o nada e o ser. Isto no sentido de que cada coisa tem uma essência que lhe é própria e que se esgota em si mesma. Uma cadeira é uma cadeira e nada que exista fora dela interfere na sua essência de cadeira. Mesmo quem nela se senta não pode interferir na sua natureza. Para essa peça de mobiliário é como se nada existisse fora dela. Porquê? Porque a cadeira não é um ser consciente. Claro que os seres vivos podem ter alguma consciência de si e interagir com o mundo exterior. Mas em termos de forma eles existem enquanto tais e, se não existissem, no seu lugar estaria o nada. Mas o desenho é apenas uma característica da forma, logo esta é que é a fronteira entre o ser e o nada. É um conceito que serve apenas para consciencializarmos a existência do ser. Em boa verdade o nada não existe. Mas ao designar o nada estou a contar com ele. Então eu diria que a essência do nada é a não existência. O que quer dizer que a não existência existe. Bom, vamos ficar por aqui e nem vamos tentar falar em transcendência, imanência, ser e não ser, e tudo o mais sobre o que se debruçam os filósofos, na tentativa de explicar esta coisa magnífica que é existir. O mundo físico é suficientemente rico para baralhar a nossa pobre inteligência. Basta pensar na electricidade, no magnetismo e na gravidade  para vermos como existem coisas, que lá terão a sua forma, nem que seja em equações matemáticas, de que conhecemos os efeitos mas desconhecemos a substância. E o ser, se aceitarmos a Metafísica, pode ser informal. Portanto o que eu posso afirmar, com algum bom senso, é que a forma é o aspecto  exterior das coisas. Reconheço, no entanto, a insuficiência desta afirmação. Sobre o assunto do ser e do nada Sartre escreveu um livro de mais de quatrocentas páginas e outros, antes dele, fizeram coisas semelhantes o que nos dá uma ideia de quão vasto é o problema. Se um artista tivesse que estudar esses livros para realizar obras de arte os museus estavam vazios. Peço desculpa aos filósofos por esta pequena brincadeira. Sei que o assunto é sério e se o menciono é porque eu próprio, na minha ignorância, sinto necessidade de equacionar o problema da forma do modo menos empírico que me é possível.

 
Quando referimos o desenho de uma forma, ou da forma de um objecto, estamos a fazer uma redução abusiva dessa forma. Porque o objecto tem volume, massa, densidade, textura e uma infinidade de perfis. Logo, reduzir tudo isso a um único desenho é a maneira de nos apropriarmos de uma ideia, a ideia que temos dessa forma.

Todo objecto físico tem forma, desde o infinitamente grande ao infinitamente pequeno. Mas parece-me evidente que ao usar a palavra infinitamente grande ou pequeno estamos a afirmar a nossa incapacidade de apreender o cosmos. O infinito é, por definição, inapreensível, ou seja, incognoscível. O Universo será, porventura, finito. Há boas razões para pensar que o é. Mas é tão incomensuravelmente grande que, quer na direcção das estrelas quer na das partículas, há um horizonte em que o perdemos de vista.

Quanto aos objectos físicos de forma indefinida, como os fluidos, também têm forma. Os seus átomos e moléculas têm padrões de movimento que podem ser exemplificados em desenho. Actualmente há cientistas que pretendem descobrir a fórmula matemática que define essas formas, utilizando a extraordinária capacidade de cálculo dos computadores. Já Leonardo D’ Avinci se interessou pelo movimento dos fluidos e tem desenhos que ilustram as suas observações.

Temos, portanto, que o desenho é o registo de uma ideia. Nesse sentido é um conceito abstracto que se manifesta numa visibilidade concreta. A verdade é que o conhecimento é o conjunto de ideias que temos no cérebro e que necessitam de veículos concretos para serem trocadas entre as pessoas. Esses veículos podem ser de vária natureza entre os quais, a palavra e o desenho serão os mais significativos.

Não sei se é possível dizer o que apareceu primeiro, se a palavra se a imagem. Palavra dita ou imagem desenhada. É possível que os primitivos hominídeos tenham mimado os animais que queriam caçar antes de lhes darem um nome.

Sabe-se quando tiveram a capacidade de articular a linguagem. A antropologia diz-nos isso com alguma exactidão. Se o fizeram mesmo, nesse momento, não sabemos. O que sabemos é que em determinada altura os homens fizeram as gravuras rupestres, numa feérica demonstração de que a sua humanização estava completa. Esses homens eram iguais a nós, agiam da mesma maneira, pensavam do mesmo modo.

O significado dessas gravuras não sabemos. Poderemos pensar que tinham um significado mágico ou religioso. Que o facto de terem sido desenhados no interior de cavernas, de difícil acesso, é prova do seu carácter religioso mas, as gravuras de Foz Côa foram feitas ao ar livre, à luz inclemente do Sol.

Também podemos pensar num tempo pré-mágico e pré-religioso onde o homem tinha necessidade de capturar a imagem para se identificar com a realidade tal como o fazem as crianças. Qualquer criança desenha até descobrir que os seus desenhos já não se adequam à imagem que tem da realidade. Volta a desenhar quando é capaz de fazer essa adequação. É nessa altura que o talento começa a despontar.

O que é possível ver é que, os homens pré-históricos que fizeram essas gravuras, dominavam perfeitamente o desenho e tinham soluções formais que nos enchem de espanto.

Também podemos deduzir que, tal como agora, essas obras eram destinadas ao grupo social e fundamentais na sua coesão. Veremos como o Tomás, nesse aspecto, é um primitivo.

Dissemos que o desenho era o modo que tínhamos de nos apropriarmos de uma ideia. Ou, de representarmos uma ideia. O que, no nosso cérebro, corresponde a um objecto é um campo electroquímico cuja composição resulta da imagem que se produz na retina, por sua vez, uma representação do objecto. Quanto ao objecto em si, e quem diz o objecto pode dizer o cosmos, é apenas um quantum de espaço onde alguns átomos se aproximam numa estrutura particular. Mas essa aproximação é muito relativa porque os átomos mantêm uma enorme distância entre si. Para os neutrinos, que nos atravessam o corpo a todo o momento, aos milhões por centímetro quadrado, é como se não existíssemos e a matéria é constituída pelas raríssimas partículas que eles, esporadicamente, encontram. O resto é vazio. Nós somos, essencialmente, vazio.

Na arte paleolítica o desenho é figurativo. O que é que isto quer dizer? Obviamente conforme o original. Mas o que estaria subjacente a essa representação não seria algo muito para além da representação pura e simples do objecto?  Não seria muito mais importante a relação entre o pensamento humano e a imagem, veículo de um problema existencial, porventura de sobrevivência? Jamais o saberemos, mas, quando no Neolítico, aparecem figurações abstractas, ou tão estilizadas que se afastam definitivamente do original, podemos julgar que a relação entre a forma desenhada e a ideia era muito mais complexa do que, à primeira vista, poderíamos supor. E porque será que em ambos os casos falamos de figuras? Figuras abstractas? Sim, figuras, porque a figuração, no desenho, é, precisamente, a tentativa de concretizar o que se tem na cabeça por mais abstracta que a coisa seja.

Esta viagem ao passado é importante para vermos como o homem pré histórico já era um dos nossos. E como, desde então, a Humanidade tem seguido determinados padrões. As formas artísticas têm acompanhado o desenvolvimento cultural, tecnológico, filosófico, sociológico e tudo o que caracteriza uma civilização. Por vezes com estagnações e avanços, jamais com recuos. Muitas vezes aquilo que parece um retrocesso é apenas outra coisa.

Quando comecei a conhecer a arte da Idade Média fiquei muito surpreendido. Aquilo parecia muito mal desenhado. Autêntica inabilidade. Com o aprofundamento do estudo verifiquei que havia uma genuína coerência formal nessa arte. Portanto, se eles desenhavam assim era porque queriam. Depois descobri o pensamento que estava na origem desse modo de desenhar. A queda do Império Romano do Ocidente e o advento do cristianismo tinham deslocado o ponto de vista dos homens. O mundo passou a ser um lugar de preparação para a verdadeira vida e o corpo um receptáculo, pouco importante, para a alma. Não era inabilidade, era a representação física de formulações intelectuais. Na origem da representação medieval está a arte paleocristã que, por sua vez, nasce da representação greco-romana, num evolução que acompanha a progressiva mudança do pensamento.                                               

No séc VIII existiu em Liébana um grande iluminista. É designado por Beato de Liébana. Porque o trago à colação? Porque dois grandes pintores do séc.XX, Picasso e Matisse, têm soluções formais extremamente semelhantes às do iluminista referido.

Não digo que o copiaram. Nem sei se conheciam a sua obra. Mas o facto é que as semelhanças são flagrantes. Mas mais do que saber se houve influências é saber se, o que aconteceu, não foi a desvalorização da figura humana, como ícone de uma época que punha em causa o orgulho renascentista do homem em si próprio. Sei que é uma questão polémica. Deixo apenas a interrogação.

As formas artísticas existem para o presente de cada uma delas e para o futuro da Humanidade. Uma vez descobertas podem reaparecer embora o novo contexto nunca seja igual ao primeiro. Uma obra prima do passado continua a ser uma obra prima no presente. A sua cópia será uma coisa sem sentido. Sempre que se tenta reavivar o passado o que se consegue é sempre uma coisa nova.

Mas, afinal, desenhar o que é?

Aristóteles dizia que o valor de um retrato, para um observador, era a sua adequação ao original. Assim, esse observador, tirava prazer ao descobrir essa adequação. Mas o próprio Aristóteles percebeu as limitações desse raciocínio. Porque, se o observador não conhecer o retratado, a obra continua a ter o mesmo intrínseco valor. Então o prazer do observador deve-se à qualidade artística do desenho. Isto que se diz de um retrato aplica-se a qualquer representação. O que quer dizer que é necessária alguma aprendizagem para se poder apreciar uma obra de arte. Sobre este assunto digo apenas que essa aprendizagem deve começar na escola.

Para responder à pergunta, desenhar o que é?, vou contar uma história pessoal.

Um dia, na escola do Porto, um professor, que nem era professor de desenho, disse numa aula: — Querem ver o que se pode fazer com um carvão? — e sentou-se frente a um cavalete com uma folha de desenho. Toda a turma o rodeou. Ele pegou no carvão e começou a traçar uma linha. Ao mesmo tempo ia falando. E dizia: — Reparem como esta linha é luminosa, vibrátil. Se eu a interromper e continuar um pouco mais à frente aquela interrupção funciona como um ponto de luz. Agora continuo e carrego mais no carvão. A textura do papel resiste à sua progressão. Eu forço essa resistência e o traço alarga-se, torna-se mais dramático. Pode fazer alguns desvios que não comprometem a direcção que lhe dou. Passa a haver um contraste com a parte anterior do traço. De um lado tenho luz, do outro tenho sombra. Se agora traçar outro traço ele vai encontrar o primeiro. Os dois confrontam-se. Tenho que ser eu decidir qual deles sai vencedor. Seja qual for o resultado o confronto deixou marcas no papel. Em todo este percurso desenrola-se um drama, entre o meu pensamento, as minhas emoções, a minha mão e os materiais que utilizo. Quer represente alguma coisa concreta ou apenas um estado de alma, para além do que o que desenho queira significar, fica na folha de papel o registo desse drama. Desenhar é isto.

Esta cena não terá durado mais do que cinco minutos no fim dos quais eu disse para mim próprio: — Finalmente sei o que é desenhar.

Aquela demonstração ligou o meu pensamento ao meu instinto unindo as pontas que o estudo teórico não tinha sido capaz de ligar.

E desenhar é isto mesmo. Para além da mensagem, daquilo que representa, há uma qualidade intrínseca ao próprio traço que resulta do seu aparecimento como objecto de pleno direito.

Nem todos os artistas desenham no sentido em que acabei de enunciar. Canto da Maya não fazia desenhos. Mas  dizia que, no fundo, não fazia outra coisa. — Dar forma é desenhar. — Disse-me uma vez. E, de facto, quando um escultor cria um objecto que tem três dimensões está a considerar uma infinidade de perfis, uma infinidade de desenhos. Mas é outro tipo de desenho. Quando o escultor modela, ou constrói, o significado de perfil é diferente do sentido comum. O perfil não é uma coisa que se vê de lado. É uma interiorização em todas as direcções que faz parte integrante de conceitos como massa, volume, plano, cheio e vazio, estrutura, etc. Por vezes tenta ultrapassar tudo isso e adicionar à sua representação a noção de tempo. Raposo de França tem uma peça, na Assembleia Regional, muito significativa nesse aspecto. Trata-se de uma figura que se desloca  no espaço e fixa o movimento numa sequência de momentos. Outros preocupam-se com o tempo e o espaço, o lugar onde a realidade existe. É o que faz o pintor Eduardo Teixeira com a fragmentação da realidade numa sobreposição de momentos distintos. E o próprio Tomaz Vieira com os seus planos articulados entre si que nos dão uma representação simultânea de vários aspectos da realidade que, muitas vezes, são ancorados com um único objecto.

O Tomaz não tem problemas com o acto de desenhar. Tem desenhos que parecem uma actividade lúdica. Tem outros por onde perpassa o lirismo, outros ainda de forte expressão dramática. Em alguns consegue-se ver a origem de pinturas posteriores como se fossem a resolução de um problema formal. Outros ainda são nitidamente a recolha de elementos para grandes composições.

Evidentemente o Tomaz é, essencialmente, um pintor. Toda a sua pintura, principalmente depois que se fixou nos Açores, é uma reflexão sobre o povo que habita estas ilhas. Não à procura das consequências da insularidade mas

na pesquisa ou interpretação do que mais fundo lhe vai na alma. A obra do Tomaz ultrapassa os limites da religiosidade e do folclore, da própria condição social, para nos dar o retrato mais íntimo, quase espectral, do homem e da mulher perante o extraordinário e inexplicável acto de existir.  E existir nestas  ilhas não é o mesmo que existir noutro lado qualquer. Não é melhor nem pior, é apenas diferente. Essa diferença pode nem ser importante para outros artistas mas foi nela que o Tomaz apostou.

Mas sendo pintor, o Tomaz não menoriza o desenho. Até o utiliza como campo de experimentação. E são vários os desenhos que revelam essa vontade.

Falemos então do livro, que é a razão de estarmos aqui, e a primeira questão é saber porquê este tipo de livro. É que o Tomaz já teve outros livros, muitos catálogos, uns mais luxuosos outros mais simples. E este livro nem sequer tem um formato especial, é quase um livro de bolso. Ora para o Tomaz Vieira nunca menos do que, pelo menos, o formato A4, capa dura, uma longa introdução e, claro, papel couché. Pois é, só que as cartas de amor não se escrevem em papel couché e este livro é uma carta de amor. Por isso é simples como o amor que não precisa de muita literatura para se mostrar. E pode-se amar assim a Arte e, no caso presente, o Desenho. O livro é resultado de algumas cumplicidades. O Tomaz deixou Vanessa Branco pesquisar o seu acervo dando-lhe completa liberdade. Vanessa Branco usou essa liberdade, fez as suas escolhas e compôs uma narrativa emotiva que passa pelas pessoas, pelos lugares, pelo pensamento. Escreveu a introdução de uma página, quase querendo não dar nas vistas, procurando valorizar o autor dos desenhos. A matéria prima é do pintor mas o percurso é da autora do livro. Nestes desenhos está toda uma vida, desde os verdes anos do artista até à sua maturidade. Sem seguir uma lógica cronológica como é próprio dos historiadores, a autora deixou-se guiar pela emoção procurando descobrir em cada desenho o momento existencial da sua origem. Teve que, de certo modo, experimentar a empatia filosófica do conhecimento e sentir como seus os momentos que o pintor viveu. Daí a fluidez da sequência das imagens, a simplicidade dos títulos que, no fundo, são verdadeiros comentários. Até o tipo de letra é de uma eficácia que surpreende.

O livro está dividido em capítulos. Cada capítulo tem um nome. Em lugar de palavras que contam uma história, cada capítulo contem desenhos que mostram momentos que contam histórias. E regressamos à questão de saber o que apareceu primeiro, a imagem ou a palavra. E perguntamos o que é mais importante. Neste livro o verbo é equivalente à imagem. Porque escrever DO MAR, O PRINCÍPIO E O FIM ou PARA ALÉM DAS ESTAÇÕES DO ANO ou ainda DA MELANCOLIA é evocar a transcendência dos momentos, o vibrar das emoções e o desenrolar da vida. O que Vanessa Branco fez foi escrever um livro onde as palavras são desenhos do Tomaz. Imaginam esse discurso em papel couché? Seria um desastre. Estragaria a beleza da simplicidade que envolve a feitura deste livro.

Por seu lado o editor ao dar cobertura a este tipo de livro também participa na sua magia e  acentua a ideia de que o Tomaz é um primitivo. Porque percebe-se que existe uma forte ligação à sua tribo, neste caso o povo da ilha. De certo modo ele é um exorcista porque penetra bem fundo na alma açoriana e expõe à luz do dia os seus fantasmas. E as pessoas compreendem-no e compreendendo-o conhecem-se melhor a si próprias.

No fim do livro existe uma página com um pequeno texto do Tomaz. Nesse texto, em seis parágrafos, alguns de apenas uma linha, ele diz tudo sobre o desenho. No último diz: “Liberto-me daquilo que desenho”. O que Vanessa Branco fez foi pegar nessas libertações, incorporá-las no seu ser sensível e distribuí-las pelas páginas do livro de modo a criar uma história coerente. História que não obedece à racionalidade do tempo, mas à eficácia da emoção.
 
 
José Maria França Machado.
 
Texto de apresentação do livro Uns Mais Outros Menos de Vanessa Branco e seleção de desenhos de Tomaz Borba Vieira.


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