terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Urbano Bettencourt - Inquietação insular e figuração satírica em José Martins Garcia



« (...) Fazendo um breve exercício de memória, creio que a escolha da obra de José Martins Garcia, particularmente na sua vertente satírica, começou há quarenta anos, quando, em finais de 1974, Manuel Pereira de Medeiros, o Livreiro açoriano de Setúbal, me chamou a atenção para um livro que trazia um título esquisito, «Katafaraum é uma nação«, e me deixou ainda outras informações de natureza extraliterária, que, aliás, nunca interferiram no meu relacionamento com a obra. Nesse livro chamou-me a atenção o «tom» da narrativa inicial sobre a docência que se esgota no método e na análise da metodologia do método, num jogo de espelhos verbais que se desdobram até ao infinito, esterilmente; mas detive-me em especial na segunda parte do livro, em parte pelos conteúdos narrativos (a guerra em África, entre outros), em parte pelo jogo irónico com alguma nomenclatura gramatical conhecida.
Depois, no ano letivo de 1975-76, o acaso fez-me aluno de José Martins Garcia numa cadeira de Linguística e pude, então, voltar a «Katafaraum» já com outra competência de leitura e descodificar aquilo que me escapara inicialmente: o tratamento irónico a que também aí eram sujeitos nomes e conceitos como Chomsky, competência, «performance».
Eu, afinal, tinha chegado à Linguística por portas travessas, e entre o discurso sério das aulas e o discurso irónico da ficção devo ter balançado bastante. O discurso da ficção acabou por prevalecer…»


Excerto do texto de apresentação da tese de Urbano Bettencourt, ontem na Universidade dos Açores,  "Inquietação insular e figuração satírica em José Martins Garcia",  esta defendida com Distinção e Louvor por unanimidade do júri.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Joseph Cardozo um Corsário Açoriano Em Argel




No Outono de 1675, o navio português Nossa Senhora da Palma e São Raphael, que havia largado do Maranhão com destino a Lisboa, foi capturado ao largo do Cabo de São Vicente por um corsário de Argel e forçado a seguir para este porto, situado na região do Norte de África então designada por “Berbéria”. Uma operação que passara a fazer parte da vida quotidiana do Atlântico Norte, desde que, a partir do início do século XVII, os corsários de Tunis e Argel, em consonância com os seus confrades de Salé, alargaram a sua actividade, ao “Grande Oceano”.

Entre os tripulantes daquele navio encontrava-se um grumete de 19 anos, natural da Ribeira dos Flamengos, na ilha do Faial, de seu nome Joseph Cardozo. Estava perto de terminar a sua primeira viagem de longo-curso, mas, contrariamente às suas expectativas, esta acabou no mercado de escravos de Argel onde, a par dos outros elementos da tripulação e dos passageiros, foi vendido a quem por ele ofereceu mais dinheiro.

Por decisão do seu proprietário, Joseph Cardozo embarcou, passado pouco tempo, num navio de corso, cuja tripulação era constituída por soldados turcos, por cativos como ele próprio e por europeus que, por terem renegado a fé de Cristo, viviam em plena liberdade, dando mostras de alguma prosperidade. Uma situação que contrastava claramente com sua, obrigado que estava no fim de cada viagem, a entregar ao seu “senhor” o quinhão que lhe fora atribuído, depois de feita a divisão das presas efectuadas pelo seu navio.

A exemplo do que aconteceu com alguns dos muitos milhares de cativos que caíram nas mãos dos corsários da Berbéria, em particular com aqueles que integravam as tripulações dos navios de corso, Joseph Cardozo converteu-se ao Islamismo e continuou a exercer a sua nova profissão de corsário, mas agora como “homem livre”. E, ao que tudo indica, com grande competência, não só pela sua ascensão na hierarquia do corso, onde atingiu o posto de imediato, mas, sobretudo, porque passou a ser conhecido em Argel como um corsário de fama.
Joseph Cardozo Corsário Em Argel (1675-1694), Mário Fernandes, Chiado Editora.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

"Uns Mais Outros Menos" por José Maria França Machado




UNS MAIS E OUTROS MENOS

 

Eu pretendia começar dizendo que o desenho é a fronteira entre o nada e o ser. Isto no sentido de que cada coisa tem uma essência que lhe é própria e que se esgota em si mesma. Uma cadeira é uma cadeira e nada que exista fora dela interfere na sua essência de cadeira. Mesmo quem nela se senta não pode interferir na sua natureza. Para essa peça de mobiliário é como se nada existisse fora dela. Porquê? Porque a cadeira não é um ser consciente. Claro que os seres vivos podem ter alguma consciência de si e interagir com o mundo exterior. Mas em termos de forma eles existem enquanto tais e, se não existissem, no seu lugar estaria o nada. Mas o desenho é apenas uma característica da forma, logo esta é que é a fronteira entre o ser e o nada. É um conceito que serve apenas para consciencializarmos a existência do ser. Em boa verdade o nada não existe. Mas ao designar o nada estou a contar com ele. Então eu diria que a essência do nada é a não existência. O que quer dizer que a não existência existe. Bom, vamos ficar por aqui e nem vamos tentar falar em transcendência, imanência, ser e não ser, e tudo o mais sobre o que se debruçam os filósofos, na tentativa de explicar esta coisa magnífica que é existir. O mundo físico é suficientemente rico para baralhar a nossa pobre inteligência. Basta pensar na electricidade, no magnetismo e na gravidade  para vermos como existem coisas, que lá terão a sua forma, nem que seja em equações matemáticas, de que conhecemos os efeitos mas desconhecemos a substância. E o ser, se aceitarmos a Metafísica, pode ser informal. Portanto o que eu posso afirmar, com algum bom senso, é que a forma é o aspecto  exterior das coisas. Reconheço, no entanto, a insuficiência desta afirmação. Sobre o assunto do ser e do nada Sartre escreveu um livro de mais de quatrocentas páginas e outros, antes dele, fizeram coisas semelhantes o que nos dá uma ideia de quão vasto é o problema. Se um artista tivesse que estudar esses livros para realizar obras de arte os museus estavam vazios. Peço desculpa aos filósofos por esta pequena brincadeira. Sei que o assunto é sério e se o menciono é porque eu próprio, na minha ignorância, sinto necessidade de equacionar o problema da forma do modo menos empírico que me é possível.

 
Quando referimos o desenho de uma forma, ou da forma de um objecto, estamos a fazer uma redução abusiva dessa forma. Porque o objecto tem volume, massa, densidade, textura e uma infinidade de perfis. Logo, reduzir tudo isso a um único desenho é a maneira de nos apropriarmos de uma ideia, a ideia que temos dessa forma.

Todo objecto físico tem forma, desde o infinitamente grande ao infinitamente pequeno. Mas parece-me evidente que ao usar a palavra infinitamente grande ou pequeno estamos a afirmar a nossa incapacidade de apreender o cosmos. O infinito é, por definição, inapreensível, ou seja, incognoscível. O Universo será, porventura, finito. Há boas razões para pensar que o é. Mas é tão incomensuravelmente grande que, quer na direcção das estrelas quer na das partículas, há um horizonte em que o perdemos de vista.

Quanto aos objectos físicos de forma indefinida, como os fluidos, também têm forma. Os seus átomos e moléculas têm padrões de movimento que podem ser exemplificados em desenho. Actualmente há cientistas que pretendem descobrir a fórmula matemática que define essas formas, utilizando a extraordinária capacidade de cálculo dos computadores. Já Leonardo D’ Avinci se interessou pelo movimento dos fluidos e tem desenhos que ilustram as suas observações.

Temos, portanto, que o desenho é o registo de uma ideia. Nesse sentido é um conceito abstracto que se manifesta numa visibilidade concreta. A verdade é que o conhecimento é o conjunto de ideias que temos no cérebro e que necessitam de veículos concretos para serem trocadas entre as pessoas. Esses veículos podem ser de vária natureza entre os quais, a palavra e o desenho serão os mais significativos.

Não sei se é possível dizer o que apareceu primeiro, se a palavra se a imagem. Palavra dita ou imagem desenhada. É possível que os primitivos hominídeos tenham mimado os animais que queriam caçar antes de lhes darem um nome.

Sabe-se quando tiveram a capacidade de articular a linguagem. A antropologia diz-nos isso com alguma exactidão. Se o fizeram mesmo, nesse momento, não sabemos. O que sabemos é que em determinada altura os homens fizeram as gravuras rupestres, numa feérica demonstração de que a sua humanização estava completa. Esses homens eram iguais a nós, agiam da mesma maneira, pensavam do mesmo modo.

O significado dessas gravuras não sabemos. Poderemos pensar que tinham um significado mágico ou religioso. Que o facto de terem sido desenhados no interior de cavernas, de difícil acesso, é prova do seu carácter religioso mas, as gravuras de Foz Côa foram feitas ao ar livre, à luz inclemente do Sol.

Também podemos pensar num tempo pré-mágico e pré-religioso onde o homem tinha necessidade de capturar a imagem para se identificar com a realidade tal como o fazem as crianças. Qualquer criança desenha até descobrir que os seus desenhos já não se adequam à imagem que tem da realidade. Volta a desenhar quando é capaz de fazer essa adequação. É nessa altura que o talento começa a despontar.

O que é possível ver é que, os homens pré-históricos que fizeram essas gravuras, dominavam perfeitamente o desenho e tinham soluções formais que nos enchem de espanto.

Também podemos deduzir que, tal como agora, essas obras eram destinadas ao grupo social e fundamentais na sua coesão. Veremos como o Tomás, nesse aspecto, é um primitivo.

Dissemos que o desenho era o modo que tínhamos de nos apropriarmos de uma ideia. Ou, de representarmos uma ideia. O que, no nosso cérebro, corresponde a um objecto é um campo electroquímico cuja composição resulta da imagem que se produz na retina, por sua vez, uma representação do objecto. Quanto ao objecto em si, e quem diz o objecto pode dizer o cosmos, é apenas um quantum de espaço onde alguns átomos se aproximam numa estrutura particular. Mas essa aproximação é muito relativa porque os átomos mantêm uma enorme distância entre si. Para os neutrinos, que nos atravessam o corpo a todo o momento, aos milhões por centímetro quadrado, é como se não existíssemos e a matéria é constituída pelas raríssimas partículas que eles, esporadicamente, encontram. O resto é vazio. Nós somos, essencialmente, vazio.

Na arte paleolítica o desenho é figurativo. O que é que isto quer dizer? Obviamente conforme o original. Mas o que estaria subjacente a essa representação não seria algo muito para além da representação pura e simples do objecto?  Não seria muito mais importante a relação entre o pensamento humano e a imagem, veículo de um problema existencial, porventura de sobrevivência? Jamais o saberemos, mas, quando no Neolítico, aparecem figurações abstractas, ou tão estilizadas que se afastam definitivamente do original, podemos julgar que a relação entre a forma desenhada e a ideia era muito mais complexa do que, à primeira vista, poderíamos supor. E porque será que em ambos os casos falamos de figuras? Figuras abstractas? Sim, figuras, porque a figuração, no desenho, é, precisamente, a tentativa de concretizar o que se tem na cabeça por mais abstracta que a coisa seja.

Esta viagem ao passado é importante para vermos como o homem pré histórico já era um dos nossos. E como, desde então, a Humanidade tem seguido determinados padrões. As formas artísticas têm acompanhado o desenvolvimento cultural, tecnológico, filosófico, sociológico e tudo o que caracteriza uma civilização. Por vezes com estagnações e avanços, jamais com recuos. Muitas vezes aquilo que parece um retrocesso é apenas outra coisa.

Quando comecei a conhecer a arte da Idade Média fiquei muito surpreendido. Aquilo parecia muito mal desenhado. Autêntica inabilidade. Com o aprofundamento do estudo verifiquei que havia uma genuína coerência formal nessa arte. Portanto, se eles desenhavam assim era porque queriam. Depois descobri o pensamento que estava na origem desse modo de desenhar. A queda do Império Romano do Ocidente e o advento do cristianismo tinham deslocado o ponto de vista dos homens. O mundo passou a ser um lugar de preparação para a verdadeira vida e o corpo um receptáculo, pouco importante, para a alma. Não era inabilidade, era a representação física de formulações intelectuais. Na origem da representação medieval está a arte paleocristã que, por sua vez, nasce da representação greco-romana, num evolução que acompanha a progressiva mudança do pensamento.                                               

No séc VIII existiu em Liébana um grande iluminista. É designado por Beato de Liébana. Porque o trago à colação? Porque dois grandes pintores do séc.XX, Picasso e Matisse, têm soluções formais extremamente semelhantes às do iluminista referido.

Não digo que o copiaram. Nem sei se conheciam a sua obra. Mas o facto é que as semelhanças são flagrantes. Mas mais do que saber se houve influências é saber se, o que aconteceu, não foi a desvalorização da figura humana, como ícone de uma época que punha em causa o orgulho renascentista do homem em si próprio. Sei que é uma questão polémica. Deixo apenas a interrogação.

As formas artísticas existem para o presente de cada uma delas e para o futuro da Humanidade. Uma vez descobertas podem reaparecer embora o novo contexto nunca seja igual ao primeiro. Uma obra prima do passado continua a ser uma obra prima no presente. A sua cópia será uma coisa sem sentido. Sempre que se tenta reavivar o passado o que se consegue é sempre uma coisa nova.

Mas, afinal, desenhar o que é?

Aristóteles dizia que o valor de um retrato, para um observador, era a sua adequação ao original. Assim, esse observador, tirava prazer ao descobrir essa adequação. Mas o próprio Aristóteles percebeu as limitações desse raciocínio. Porque, se o observador não conhecer o retratado, a obra continua a ter o mesmo intrínseco valor. Então o prazer do observador deve-se à qualidade artística do desenho. Isto que se diz de um retrato aplica-se a qualquer representação. O que quer dizer que é necessária alguma aprendizagem para se poder apreciar uma obra de arte. Sobre este assunto digo apenas que essa aprendizagem deve começar na escola.

Para responder à pergunta, desenhar o que é?, vou contar uma história pessoal.

Um dia, na escola do Porto, um professor, que nem era professor de desenho, disse numa aula: — Querem ver o que se pode fazer com um carvão? — e sentou-se frente a um cavalete com uma folha de desenho. Toda a turma o rodeou. Ele pegou no carvão e começou a traçar uma linha. Ao mesmo tempo ia falando. E dizia: — Reparem como esta linha é luminosa, vibrátil. Se eu a interromper e continuar um pouco mais à frente aquela interrupção funciona como um ponto de luz. Agora continuo e carrego mais no carvão. A textura do papel resiste à sua progressão. Eu forço essa resistência e o traço alarga-se, torna-se mais dramático. Pode fazer alguns desvios que não comprometem a direcção que lhe dou. Passa a haver um contraste com a parte anterior do traço. De um lado tenho luz, do outro tenho sombra. Se agora traçar outro traço ele vai encontrar o primeiro. Os dois confrontam-se. Tenho que ser eu decidir qual deles sai vencedor. Seja qual for o resultado o confronto deixou marcas no papel. Em todo este percurso desenrola-se um drama, entre o meu pensamento, as minhas emoções, a minha mão e os materiais que utilizo. Quer represente alguma coisa concreta ou apenas um estado de alma, para além do que o que desenho queira significar, fica na folha de papel o registo desse drama. Desenhar é isto.

Esta cena não terá durado mais do que cinco minutos no fim dos quais eu disse para mim próprio: — Finalmente sei o que é desenhar.

Aquela demonstração ligou o meu pensamento ao meu instinto unindo as pontas que o estudo teórico não tinha sido capaz de ligar.

E desenhar é isto mesmo. Para além da mensagem, daquilo que representa, há uma qualidade intrínseca ao próprio traço que resulta do seu aparecimento como objecto de pleno direito.

Nem todos os artistas desenham no sentido em que acabei de enunciar. Canto da Maya não fazia desenhos. Mas  dizia que, no fundo, não fazia outra coisa. — Dar forma é desenhar. — Disse-me uma vez. E, de facto, quando um escultor cria um objecto que tem três dimensões está a considerar uma infinidade de perfis, uma infinidade de desenhos. Mas é outro tipo de desenho. Quando o escultor modela, ou constrói, o significado de perfil é diferente do sentido comum. O perfil não é uma coisa que se vê de lado. É uma interiorização em todas as direcções que faz parte integrante de conceitos como massa, volume, plano, cheio e vazio, estrutura, etc. Por vezes tenta ultrapassar tudo isso e adicionar à sua representação a noção de tempo. Raposo de França tem uma peça, na Assembleia Regional, muito significativa nesse aspecto. Trata-se de uma figura que se desloca  no espaço e fixa o movimento numa sequência de momentos. Outros preocupam-se com o tempo e o espaço, o lugar onde a realidade existe. É o que faz o pintor Eduardo Teixeira com a fragmentação da realidade numa sobreposição de momentos distintos. E o próprio Tomaz Vieira com os seus planos articulados entre si que nos dão uma representação simultânea de vários aspectos da realidade que, muitas vezes, são ancorados com um único objecto.

O Tomaz não tem problemas com o acto de desenhar. Tem desenhos que parecem uma actividade lúdica. Tem outros por onde perpassa o lirismo, outros ainda de forte expressão dramática. Em alguns consegue-se ver a origem de pinturas posteriores como se fossem a resolução de um problema formal. Outros ainda são nitidamente a recolha de elementos para grandes composições.

Evidentemente o Tomaz é, essencialmente, um pintor. Toda a sua pintura, principalmente depois que se fixou nos Açores, é uma reflexão sobre o povo que habita estas ilhas. Não à procura das consequências da insularidade mas

na pesquisa ou interpretação do que mais fundo lhe vai na alma. A obra do Tomaz ultrapassa os limites da religiosidade e do folclore, da própria condição social, para nos dar o retrato mais íntimo, quase espectral, do homem e da mulher perante o extraordinário e inexplicável acto de existir.  E existir nestas  ilhas não é o mesmo que existir noutro lado qualquer. Não é melhor nem pior, é apenas diferente. Essa diferença pode nem ser importante para outros artistas mas foi nela que o Tomaz apostou.

Mas sendo pintor, o Tomaz não menoriza o desenho. Até o utiliza como campo de experimentação. E são vários os desenhos que revelam essa vontade.

Falemos então do livro, que é a razão de estarmos aqui, e a primeira questão é saber porquê este tipo de livro. É que o Tomaz já teve outros livros, muitos catálogos, uns mais luxuosos outros mais simples. E este livro nem sequer tem um formato especial, é quase um livro de bolso. Ora para o Tomaz Vieira nunca menos do que, pelo menos, o formato A4, capa dura, uma longa introdução e, claro, papel couché. Pois é, só que as cartas de amor não se escrevem em papel couché e este livro é uma carta de amor. Por isso é simples como o amor que não precisa de muita literatura para se mostrar. E pode-se amar assim a Arte e, no caso presente, o Desenho. O livro é resultado de algumas cumplicidades. O Tomaz deixou Vanessa Branco pesquisar o seu acervo dando-lhe completa liberdade. Vanessa Branco usou essa liberdade, fez as suas escolhas e compôs uma narrativa emotiva que passa pelas pessoas, pelos lugares, pelo pensamento. Escreveu a introdução de uma página, quase querendo não dar nas vistas, procurando valorizar o autor dos desenhos. A matéria prima é do pintor mas o percurso é da autora do livro. Nestes desenhos está toda uma vida, desde os verdes anos do artista até à sua maturidade. Sem seguir uma lógica cronológica como é próprio dos historiadores, a autora deixou-se guiar pela emoção procurando descobrir em cada desenho o momento existencial da sua origem. Teve que, de certo modo, experimentar a empatia filosófica do conhecimento e sentir como seus os momentos que o pintor viveu. Daí a fluidez da sequência das imagens, a simplicidade dos títulos que, no fundo, são verdadeiros comentários. Até o tipo de letra é de uma eficácia que surpreende.

O livro está dividido em capítulos. Cada capítulo tem um nome. Em lugar de palavras que contam uma história, cada capítulo contem desenhos que mostram momentos que contam histórias. E regressamos à questão de saber o que apareceu primeiro, a imagem ou a palavra. E perguntamos o que é mais importante. Neste livro o verbo é equivalente à imagem. Porque escrever DO MAR, O PRINCÍPIO E O FIM ou PARA ALÉM DAS ESTAÇÕES DO ANO ou ainda DA MELANCOLIA é evocar a transcendência dos momentos, o vibrar das emoções e o desenrolar da vida. O que Vanessa Branco fez foi escrever um livro onde as palavras são desenhos do Tomaz. Imaginam esse discurso em papel couché? Seria um desastre. Estragaria a beleza da simplicidade que envolve a feitura deste livro.

Por seu lado o editor ao dar cobertura a este tipo de livro também participa na sua magia e  acentua a ideia de que o Tomaz é um primitivo. Porque percebe-se que existe uma forte ligação à sua tribo, neste caso o povo da ilha. De certo modo ele é um exorcista porque penetra bem fundo na alma açoriana e expõe à luz do dia os seus fantasmas. E as pessoas compreendem-no e compreendendo-o conhecem-se melhor a si próprias.

No fim do livro existe uma página com um pequeno texto do Tomaz. Nesse texto, em seis parágrafos, alguns de apenas uma linha, ele diz tudo sobre o desenho. No último diz: “Liberto-me daquilo que desenho”. O que Vanessa Branco fez foi pegar nessas libertações, incorporá-las no seu ser sensível e distribuí-las pelas páginas do livro de modo a criar uma história coerente. História que não obedece à racionalidade do tempo, mas à eficácia da emoção.
 
 
José Maria França Machado.
 
Texto de apresentação do livro Uns Mais Outros Menos de Vanessa Branco e seleção de desenhos de Tomaz Borba Vieira.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Austeridade Cura? A Austeridade Mata?



Os Açores, e o país no seu conjunto, têm vivido os efeitos de uma política de austeridade imposta pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional, que visava ultrapassar a crise financeira de Portugal e permitir a recuperação económica.
Prestes a terminar o período previsto para a execução do programa da troika e quando é muito visível a divergência entre os resultados previstos e os registados, é essencial organizar um debate que nos aponte caminhos de futuro.

Com este objectivo, Eduardo Paz Ferreira, Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa e Presidente dos Institutos de Direito Económico, Financeiro e Fiscal e de Direito Europeu, reuniu os depoimentos de cerca de cem personalidades da vida portuguesa num livro intitulado: A Austeridade Cura? A Austeridade Mata?, que será apresentado ao público, no Teatro Micaelense, no próximo dia 18 de Fevereiro, pelas 18h 30m.

 A este propósito, Carlos César presidirá a um debate que reunirá Álvaro Borralho, Duarte Melo, Gualter Furtado e Mário Fortuna.
É com o maior prazer que o autor, a Lisbon, Law School Editors, a Livraria Solmar e o Teatro Micaelense, convidam V.Ex.ª para uma sessão da maior importância no nosso panorama cultural e cívico.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Convite " Uns Mais e Outros Menos"



15 de Fevereiro - Sábado - 17h30m - Livraria SolMar

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Vanessa Branco - Sobre aquilo que Tomaz desenha e aquilo que eu conto.




Sobre aquilo que Tomaz desenha e aquilo que eu conto.

De forma alguma pretendo, neste pequeno texto, fazer uma análise entendida aos desenhos que fazem parte deste caderno. Aquilo que me foi sugerido foi fazer uma seleção, difícil mas ao mesmo tempo prazerosa, a qual acabei por definir segundo uma orientação essencialmente pessoal e instintiva, já que outros critérios seriam difíceis, por variadas razões que não irei enunciar.

Como Tomaz me disse em conversa, estes desenhos que tinha guardados em gavetas, álbuns e molduras, uns mais e outros menos,
despertaram em mim o princípio das minhas escolhas.


Não quero com isto defender que outros os vejam da mesma maneira que os vi, mas acima de tudo considero importante que os vejam, ultrapassando o formal e o técnico, para se aproximarem também do Tomaz, pessoa que vive e experimenta.

Tomaz tem sido pintor, escritor e foi ainda professor, mas é, acima de tudo, pessoa.

Pessoa que sente, cheira, ouve, observa, vive e está presente.
É pai, filho, marido, amigo, cidadão e no fim, junta tudo isto numa receita, para ser depois saboreada por todos.

E aqui o bolo está em cada desenho, que saboreei com um chá,
e nos quais encontrei histórias, que se calhar nem foram aquelas que quis contar, mas não faz mal, Tomaz deu-me liberdade para as criar na minha cabeça e através das minhas escolhas.


Vanessa Branco, Uns Mais E Outros Menos, seleção de desenhos de Tomaz Borba Vieira, Letras Lavadas edições, 2013.

 


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Uns Mais E Outros Menos


                                                         "Sereia" - Tomaz Vieira 2013



LIBERTAR….

Entre a sensação provocada pela visão de qualquer forma, e a mão do desenhador, processa-se a perceção que comanda o acto de desenhar.
 
A representação gráfica de uma perceção, transposta da mente para o papel, passa a ser o registo de uma libertação. Cada vez que se representa uma forma, pelo desenho, processa-se
uma libertação.

Desenhamos para nos libertarmos através da convenção que permite inventar a linha de contorno.

A linha, em si própria, é uma abstração que surge como método de apresentar, em código, formas sentidas.

 Os desenhos resultam apenas de não serem necessários.

 Liberto-me daquilo que desenho.

 
Tomaz Borba Vieira
novembro 2013"

Vanessa Branco Uns Mais Outros Menos seleção de desenhos de Tomaz Borba Vieira, Letras Lavadas Edições, 2013.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Um Momento Memorável

 
 

                                                   Fotografia de Fernando Resendes


A apresentação de "Não Há Mapa Cor-De-Rosa: A História (Mal)Dita Da Integração Europeia" do Professor Doutor José Medeiros Ferreira, ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros, Deputado da Assembleia da República, Grande Historiador, um Grande Senhor, e quem assinou a entrada de Portugal na União Europeia em 1986.
A obra foi apresentada por Pilar Damião, Roberto Amaral e Vamberto Freitas.

Este evento foi uma parceria Teatro Micaelense - Livraria SolMar.


 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Entrevista a Medeiros Ferreira por Anabela Mota Ribeiro



José Medeiros Ferreira

José Medeiros Ferreira é historiador e político. Considera-se, ou gostaria de ser, um daqueles “seres erráticos”, que percorrem o mundo, de que fala Teixeira de Pascoaes no livro sobre S. Paulo. O livro O Longo Curso reúne uma série de estudos em sua homenagem.

Medeiros Ferreira crê que ficará para a história como o ministro dos negócios estrangeiros que laborou no processo de adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Estudou Filosofia em Lisboa, licenciou-se em Ciências Sociais em Genebra, doutorou-se em História na Universidade Nova. Foi dirigente associativo e opositor de Salazar. Esteve exilado na Suíça entre 1968 e 1974. Teve uma intensa carreira política. É um açoriano de quem sempre se esperou tudo. Nasceu em 1942.
A entrevista decorreu na casa onde vive com Maria Emília Brederote Santos, sua companheira de sempre. Olhemos em volta: livros a comer o espaço, xícaras elegantes sobre a mesa, um amarelo intenso no pátio do fundo, onde brincam os netos. E dois sofás, onde nos sentámos. No final, bebeu-se um Porto, assinou o livro que lhe é dedicado e outro sobre Os Açores na Política Internacional.
Pensa que o país o aproveitou pouco.


Continua a sonhar que perde os sapatos?
Agora menos. Sobretudo desde que vi The Big Fish [de Tim Burton]. No filme, as pessoas estavam presas numa aldeia porque os sapatos estavam [dependurados] numa espécie de corda da roupa. Nunca consultei um especialista para decantar o que poderia significar este sonho. Pode ter a ver com o exílio.

Pode ter que ver com a sua natureza insular, que é marcante?
Também. A nota mais saliente é que foi uma coisa repetitiva, durante uns anos.

Comecemos pelo exílio, por Genebra, pela pessoa que era então.
Exilei-me depois de me ter dado uma moratória para continuar em Portugal. Fui expulso de todas as universidades portuguesas em 1965. A expulsão foi bastante grave para o meu futuro. Percebi logo que tinha as pernas cortadas. Tinha 23 anos, tudo era possível. Sou muito formalista e recorri da pena através do Salgado Zenha, do Jorge Sampaio, do Jorge Santos e do Vasconcelos Abreu (tudo advogados meus amigos, graciosos). O meu curso era o de Filosofia, que escolhi no liceu de Ponta Delgada.

Era Antero que o inspirava?
Sempre tive uma tendência para a abstracção e especulação. O exemplo máximo e próximo do Antero de Quental pode ter ajudado. Em 1965 houve um movimento de solidariedade europeu de estudantes expulsos e presos. Tive oportunidade de ter bolsas de estudo, uma delas para Inglaterra. Lembro-me de ter dito: “Ainda não quero sair de Portugal”. Resisti, de certa maneira.

É um pouco paradoxal.
Seria lógico ter saído em 1965, mas os outros aspectos da vida não me corriam mal e fui-me deixando ficar. Ainda passei duas longas temporadas nos Açores, muito férteis em termos de leituras e de reflexão sobre a vida futura. Entre 1965 e 1968 arquitecto um plano para Portugal, que depois foi aperfeiçoado nos seis anos em que estive na Suíça. O exílio é uma decisão muito dilemática.

Sentia-se proscrito? Com essa sentença: “expulso”.
Proscrito, sem dúvida. E certamente acossado. Em Genebra, fui o primeiro a pedir o estatuto de refugiado político. O Eurico Figueiredo, o António Barreto, o Carlos Almeida, a Ana Benavente, as pessoas que estiveram nessas primeiras noitadas: todos ficaram espantados com a minha decisão de apresentar o pedido. Achavam que as autoridades políticas tinham relações diplomáticas com Portugal ao nível da EFTA, que não estariam viradas para aí.

Foi por ser um formalista que pediu o estatuto?
Foi por ser um formalista, quando um formalismo é politicamente relevante. Com o estatuto de refugiado político quis demonstrar que um país como a Suíça reconhecia que em Portugal havia uma ditadura que perseguia fisicamente os seus opositores.

Tinha esperança que o pedido fosse aceite? Deveras?
Deveras. Eu tinha sido dirigente estudantil, preso pela PIDE, tinha sido candidato a deputado à Oposição Democrática, em 1965. Tinha manifestado o meu repúdio à guerra colonial. Se a Suíça não me desse o estatuto de refugiado político, não daria a mais nenhum português. O estatuto foi-me concedido três meses depois. Isto são paradigmas de qualidade democrática e de qualidade de uma terra de refúgio, como era a Suíça. Matriculei-me na universidade de Genève, pretendia recomeçar os meus estudos.

Não tinha completado cá a licenciatura?
Não, embora tivesse praticamente o 4º ano de Filosofia. Preferi fazer a licenciatura em História, moderna e contemporânea. Recebi um convite para me apresentar no office d’entrée da universidade de Genève, do Jean François Bergier, que se tornou mundialmente famoso. Fez aquilo que Mário Soares fez em Portugal por causa do ouro nazi. Foi meu professor de Economia Social. “Estivemos a consultar o seu dossiê, se quiser pode pedir uma bolsa de estudo”. Não foram as autoridades governamentais suíças que me atribuíram uma bolsa de estudo, foram as autoridades universitárias. Considero isto de extrema delicadeza.

Como é que faria se não fosse a bolsa de estudo?
O que os outros portugueses fizeram. O António Barreto, que tinha chegado em 1963, fez trabalhos vários. Quando cheguei já era funcionário das Nações Unidas. Eu não sabia o que me ia acontecer, nem sabia qual era o meu destino.

A Suíça: foi porque tinha interesses e contactos lá?
O meu primeiro ponto de apoio foi Paris, onde fiquei alguns dias. Claro que isso não pôde ficar na minha guia de marcha, porque a Suíça só me daria o estatuto de refugiado político no caso de ter ido directamente para a Suíça. O Eurico Figueiredo mandou-me um telegrama dizendo: “Vem para Genève, estamos à tua espera, tens cama”.

A Maria Emília já existia na sua vida nessa altura?
Já. Foi ter comigo à Suíça logo no ano seguinte. Conseguiu ser professora de português numa escola de tradução, muito reputada, que tinha sido criada pelos antigos intérpretes e tradutores do processo de Nuremberga.

O fim da guerra tinha sido há 20 anos, tudo era fresco.
Mas tínhamos a noção de que a guerra tinha acabado há séculos. A partir de 1969 ficámos juntos em Genève. Até hoje.

O exílio, na nossa conversa, chegou por via do sonho dos sapatos, da angústia de os perder.
Só começo a sonhar com os sapatos com 50 anos. Expulsarem-me de todas as universidades foi tirarem-me os sapatos – para voltar à imagem. Um indivíduo fica sem sapatos três anos e depois, se calhar, já não os sabe calçar. Tinha achado a expulsão muito mais violenta do que a prisão pela PIDE, embora esta também tivesse sido violenta.

Porque é que foi tão violenta a expulsão, mais do que a prisão?
Não sei dizer. A desproporção é enorme. As acusações são porque falei numa reunião, não autorizada, de estudantes, e usei um tom jocoso. Tudo isto cifrado em três anos de expulsão de todas as universidades do país. As autoridades académicas nunca fizeram qualquer gesto de reparação, o que também dá a ideia da fragilidade intelectual das elites que se perpetuaram depois do 25 de Abril.

Essa palavra que, imagino, tenha ouvido repetidamente dentro de si: “jocoso”.
É uma acusação que vem no processo. Já não sei quem é que a fez. Há uma fotografia – “pela expressão facial percebe-se bem o tom jocoso”.

Como é que era a fotografia?
Estou a rir-me. Sempre tive uma certa alegria de viver, mesmo a falar de coisas sérias mantenho um certo humor. Nunca mais pensei muito nisto, para dizer a verdade. De vez em quando posso ler o processo.

Quando regressou a Portugal, era assistente de duas faculdades em Genève.
Quando cheguei a Portugal, 1974/75, fui convidado para três ou quatro faculdades, e para várias cadeiras e licenciaturas, embora o programa que me apresentaram fosse sempre o mesmo – a história da luta de classes. Disse a todas que não. Se tivesse dito que sim tinha feito uma carreira universitária fulgurante. Mas vinha com a ideia de dar prioridade à actividade política, e foi isso que fiz até 1980. Em Genève tinha um doutoramento em curso, o nosso filho tinha acabado de nascer. Mas aquilo que me tinha feito ir obrigava-me moralmente a regressar ao país.

Estávamos a falar das razões por que a expulsão o marcou tanto. Acusaram-no de ser PC. Era verdade?
Não. Nem mentira [riso]. Nunca tive reuniões de célula, nunca paguei quotas, nunca fui membro do Partido Comunista, mas tinha contactos clandestinos. Quando fui preso praticamente não os tinha. Prenderam-me porque tinha sido eleito secretário-geral das reuniões entre associações no ano a seguir à crise, quando sucedi a Jorge Sampaio nessa função. Não conseguiram provar nada contra mim do ponto de vista político.

Quanto tempo esteve preso?
De Novembro a Janeiro. Saí em Janeiro porque em fins de Dezembro de 1962 há uma remodelação governamental e a pasta de educação muda de mãos. Inocêncio Galvão Teles terá colocado como condição ao Dr. Salazar, para assumir a pasta, que os estudantes presos fossem libertados. Gostava de começar o seu ministério da estaca zero, do ponto de vista da repressão. Percebi que devia ter havido qualquer coisa. Fui interrogado durante três dias e três noites e depois fui lançado para o Aljube, de onde nunca mais me chamaram. Estive no isolamento um mês, e depois numa cela fantástica.

O que é uma cela fantástica?
É pelas pessoas que lá estavam. O pintor Nikias Skapinakis, o padre Joaquim Pinto de Andrade. Imagine o que significa colocar um jovem anti-salazarista na mesma cela que o padre acusado de nacionalismo angolano, e de ser um dos responsáveis pela sublevação em Luanda...

Conspiravam noite e dia?
Conspirávamos neste aspecto: entretínhamo-nos muito do ponto de vista cultural, cada um contava um filme, um romance, havia pessoas mais ligadas ao Partido Comunista. Umas seis no total, na cela. Era no 4º andar do Aljube, que dava para o lado da Sé. Quando estive no isolamento, dava para um beco.

Como se entretém a cabeça um mês numa cela, sem falar com ninguém?
E não havia aquelas comodidades de ter rádio ou televisão. Às sete e meia da manhã já estava de pé. Não deixavam entrar praticamente nada. Não podia ler jornais. Mas podia receber cigarros. Fazia um horário para fumar o meu cigarro; fumava às nove, às dez, às 11, ao meio-dia, e fazia uma interrupção para o almoço; de tarde, às duas e meia, três e meia, quatro e meia. Mudava o horário: começava às nove e meia, dez e meia. Durou um mês.
A primeira pessoa que me telefona, em português, com o 25 de Abril, é o Joaquim Pinto de Andrade. Muito comovente. Está a ver os laços que isto cria.

Os cigarros eram um recurso, como outro qualquer, para se entreter.
E a música. Não se pode tirar a música da cabeça de ninguém. Ouvia uma menina que cantava ali no pátio, umas coisinhas populares; também me servia de entretenimento.

Como é que as pessoas não quebram na cadeia? Estar um mês numa situação de isolamento é duro.
Não é uma questão de bravura, é uma questão de raciocínio. Fazemos um cálculo: “Sou um estudante conhecido, a violência sobre mim terá que ter um limite porque quando for solto posso denunciá-la”. Ameaçaram-me. Se não falasse, atiravam-me de um avião, deitavam-me ao mar no Golfo da Guiné

Animava-o também a ideia de que aqueles que estavam cá fora, e por que era um aluno conhecido, esperavam de si um comportamento heróico?
Não diria heróico. Senti-me sempre representante da insubordinação estudantil. Nunca quis trair a minha geração. Embora não goste do termo “geração”. E saí do país, em grande parte, em representação dessa geração. Para mim foi uma forma ética de estar. Estudava filosofia; o imperativo categórico de Kant, fazia isso de uma forma individualizada. “E tudo o que fizeres, faz como se fosse uma lei universal”.

Quem era a figura cá fora que servia de referência?, o seu pai?
O meu pai era referência para a minha educação. Na cadeia já ninguém me servia de referência. Era eu próprio.

Quando é que se fez autónomo?
Quando vim para Lisboa, 18 anos. Não me sinto superior a ninguém, mas nunca senti ninguém em cima de mim. Há pessoas que admiro, mas não há ninguém de quem possa dizer que exerceu uma autoridade moral sobre mim. Os meus pais, claro, deram-me uma educação de grande empenhamento, valores clássicos e tradicionais, uma educação para a responsabilidade.

Nasceu em 1942. Fale-me desse rapaz de Ponta Delgada.
Talvez isto também tenha a ver com os sapatos. Sabia sempre que não ia ficar em Ponta Delgada. O meu pai sempre quis que estudássemos. Fui o mais novo em várias situações. Desde logo em casa; era o filho mais novo, e com uma grande diferença do meu irmão mais velho, dez anos.

O seu pai tinha estudos? Como é que percebeu da importância fundamental dos estudos?
Não, tinha o 2º ano do liceu. Talvez por isso – achou que devia dar aos filhos aquilo que não teve. Estive em Vila Franca do Campo, fiz lá os estudos primários.

Nem sequer era Ponta Delgada, mais recôndito ainda.
O meu pai era guarda-fiscal. Era o comandante de metade da ilha, tudo o que ficasse para além da Lagoa, o meu pai é que comandava. Vila Franca do Campo era uma vila piscatória, lindíssima, onde a principal actividade da guarda-fiscal era cobrar impostos aos pescadores. Na escola estava com os filhos desses pescadores, que muitas vezes tinham dificuldades de leitura. Desde cedo era uma espécie de ajudante do professor primário. Isso marcou-me muito. Tive a sorte de ter uma professora de Filosofia que tinha vindo do continente, que permitia a discussão de cinema nas aulas. Fez-me crescer bastante.

A sua mãe, abria também as portas para o conhecimento?
À maneira dela. Era muito religiosa. Curiosamente, tudo o que eram milagres, dava-me a entender que não acreditava. Nunca me falou de a água ser vinho, de os peixes se multiplicarem ou da passagem de Jesus pela Terra. A palavra do Senhor, como se dizia, tinha-a na ponta da língua, os exemplos e as dúvidas. Tinha um certo pensamento sobre a linguagem, muito dela, muito reflexivo.

“No princípio era o verbo”. A palavra é verdadeiramente fundadora de um mundo.
Gosto imenso de pensar sobre as palavras. Sou um fiel adepto daquela frase do Karl Kraus: “Quanto mais vejo uma palavra de perto, mais ela me responde de longe”.

Um panfletário, Karl Krauss.
Exactamente. Mas quem diz isso da palavra, está tudo dito sobre a reflexão. Eu escrevia num jornal, que ainda existe, o Correio dos Açores, cujo director era amigo do meu pai, o Dr. Gaspar Read Henriques. Fazia crítica de cinema, como se faz aos 16, 17 anos, e ele publicava-me na primeira página.

Que filmes eram? Chegava tudo a Ponta Delgada?
Chegava tudo com um ano de atraso. O meu pai assinava os jornais do continente, A Bola, o Diário de Notícias. Iam de barco, era mais barato. No princípio dos anos 50, havia duas carreiras regulares de Lisboa para São Miguel: o Carvalho Araújo e o Lima, de 15 em 15 dias. Eram barcos que tinham sido confiscados aos alemães no tempo da Primeira Guerra Mundial.

Apesar do atraso, a verdade é que eram pontes para o mundo e quebravam a insularidade.
Sabia muito bem que o meu horizonte insular não esgotava o mundo.

Quando é que saiu pela primeira vez?
Para as outras ilhas, aos 12 anos de idade. Aos 18 para Lisboa.

O dinheiro nunca foi uma limitação?
O dinheiro era a grande limitação. O meu pai é que geria as finanças e tinha um critério de qualidade de vida: o da instrução dos filhos. Vou dar um exemplo, pôs-nos, a mim e ao meu irmão Luís, em aulas de dança. Eu tinha dez anos. Pôs os filhos nas aulas de dança para se saberem comportar em sociedade. Não havia pré-primária, e arranjou uma explicadora para termos as primeiras letras a partir dos cinco anos. A D. Maximiana, lembro-me muito bem dela. Um dia, uns oito anos depois, fomos fazer-lhe uma visita, a senhora estava caída no chão, sozinha em casa. Como as coisas são. O meu pai, quando me viu na actividade política, ficou muito preocupado. O Dr. Gaspar Read Henriques dizia-lhe: “Ó Ferreira, não mandes o teu filho para Lisboa, manda para Coimbra, sempre é mais sossegado”. Quando fui para Filosofia o meu pai disse-me: “Ao menos vai para Direito”. Mas não me proibiu.

José Medeiros Ferreira entrevistado por Anabela Mota Ribeiro, continuar aqui.
Publicada originalmente na Revista Pública, em Março de 2011.